Reflexões a partir da Série “Adolescência”

De quem é a responsabilidade sobre o que os menores de idade acessam na internet?
por Anna Carolina Guida – comunicadora e psicoterapeuta

Se você não passou as últimas semanas embaixo de uma pedra ou numa caverna sem sinal de wi-fi, provavelmente já assistiu (ou pelo menos viu muita gente comentando) a série da Netflix “Adolescência”. Seu roteiro é primoroso e nada ali é por acaso. Cada cena, cada diálogo, escolhas estéticas e estrutura técnica de filmagem, tudo ali foi pensado para nos levar a refletir sobre questões importantes que permeiam o nosso dia a dia hiperconectado, em especial se você convive com adolescentes.

A pressão social, a busca por validação e a construção de identidade sempre foram temas típicos da adolescência, mas a exposição excessiva dos jovens às redes sociais é um elemento relativamente novo nessa mistura e, como mostra a série, combinado com a leniência e despreparo dos adultos responsáveis, pode ser fatal.

Mais do que um alerta, a série escancara a necessidade de assumirmos responsabilidade coletiva na prevenção desses problemas antes que os jovens fiquem irremediavelmente sequelados pelas telas.

As redes sociais se tornaram um verdadeiro campo minado emocional, você pode até não encontrar nenhum conteúdo que considere problemático no seu feed, mas lembre-se que a lógica “sob medida” do algoritmo faz com que a sua internet seja bem diferente da do seu filho. A constante comparação entre colegas e influenciadores e a necessidade por aprovação por meio de curtidas e comentários por si só já geram altos índices de ansiedade e baixa autoestima nos jovens, além de “flodar” o sistema dopaminérgico do adolescente, podendo levá-lo ao vício em telas. Tudo se torna mais complexo e perigoso quando conteúdos Red Pill e Incel chegam a jovens meninos, como é retratado na série.

Talvez você nem saiba exatamente o que signifique esses termos, mas te garanto que esses conteúdos não demoram a chegar em meninos antes mesmo dos 13 anos de idade através de plataformas como TikTok, Discord, YouTube, etc.

“Red Pill” começou como um termo apropriado do filme “Matrix” e hoje virou um movimento masculinista que defende a superioridade de homens sobre as mulheres e as culpa por todos os infortúnios, dificuldades ou questões psicológicas que homens possam vir a passar. Além de incentivar uma representação de masculinidade muito especifica, atrelada a violência, imposição de sua vontade pela força, distanciamento dos homens e meninos de suas próprias emoções e sensibilidade, e objetificação das mulheres.

“Incel” é uma junção das palavras celibatário e involuntário – usada para descrever um homem sexualmente frustrado. Mais do que o significado literal, o termo aparece em diversas discussões defendendo a misoginia, violência e extremismo. A Liga Anti-Difamação, que trabalha para combater o ódio e o extremismo, define os incels como “homens heterossexuais que culpam as mulheres e a sociedade pela sua falta de sucesso romântico”. Os problemas de saúde mental, o isolamento e a amargura que frequentemente afligem muitos meninos no começo da adolescência encontram amparo e justificativa no discurso incel.

A série também aborda o cyberbullying, uma das formas mais cruéis de violência digital. Diferente do bullying tradicional, a perseguição online é contínua, ultrapassa os limites físicos da escola e pode acontecer a qualquer hora do dia. O resultado é um impacto psicológico devastador, muitas vezes invisível para pais e professores.

Tudo isso é pano de fundo e força motriz da série, é apresentado através das consequências psicológicas desse caldeirão de desinformação e negligência digital  que o protagonista Jaime está imerso.

Quando conhecemos Jaime, vemos um menino que mal aparenta seus treze anos, que faz xixi na calça quando se sente acuado e que afirma não ter feito nada de errado durante todo o primeiro episódio. Jaime é de fato tudo isso, mas também é um jovem que matou uma colega a facadas e passa boa parte dos episódios sem de fato parecer entender a gravidade do que fez .

Nós também demoramos para entender a quantidade de informações que a série oferece na construção dessa tempestade perfeita. Os pais, que na melhor das intenções, dedicam muitas horas para o trabalho e pouco tempo para entender a subjetividade dos filhos, que acreditam ter seus filhos seguros por terem eles em casa, mesmo que trancados no quarto na frente do computador, que atribuem à comportamentos naturais da adolescência o isolamento do jovem e a dificuldade de conexão entre as gerações, estão desorientados diante dos fatos.

Não se trata de pais ausentes e não falta amor nessa família, são sim pais que erram tentando acertar e por isso mesmo empatizamos tanto com essa família, pois estamos diante de desafios semelhantes todos os dias. Afinal, cabe à família o dever de estabelecer um ambiente de diálogo e orientação. Restringir o uso das redes é uma solução parcial, mas o mais importante é ensinar os adolescentes a utilizá-las de forma crítica e saudável.

Não é só na responsabilidade da família que a série joga luz. Vemos uma escola com profissionais perdidos e sobrecarregados, que não conseguem se manter atualizados sobre a linguagem e conteúdo que constitui o universo dos jovens, que assumem não enxergar os alunos, que fazem vista grossa para a violência cotidiana e que simplesmente não tem o preparo ou ferramentas adequadas para lidar com os desafios de se educar jovens pós revolução digital.

A escola precisa se adaptar a essa nova realidade. Programas educacionais que ensinem sobre cidadania digital, segurança online, bem-estar emocional e educação midiática são fundamentais para preparar os jovens e educadores para lidar com os desafios do mundo virtual.

Nossa ideia aqui não é culpabilizar nem os pais nem os professores, assim como não é a da série, mas sim chamar a responsabilidade coletiva.

As plataformas de redes sociais também desempenham um papel central nessa discussão. Seus algoritmos são projetados para manter os usuários engajados o máximo de tempo possível, muitas vezes promovendo conteúdos prejudiciais à saúde mental. A falta de regulação efetiva e de políticas rigorosas de proteção para jovens demonstra o descaso dessas empresas diante dos riscos envolvidos.  O problema não é de hoje e a série nos deixa com a incômoda tarefa de pensar em soluções. Soluções que ainda não foram dadas e que cabe a nós a tarefa de criar.

Pensando nisso a Escola do Absurdo vai lançar no próximo mês o curso Reconecta, que oferece orientação detalhada para que pais, cuidadores e educadores possam entender os desafios cognitivos, sociais e emocionais que as redes apresentam para as crianças e jovens e tenham conhecimento sobre as possibilidades de inclusão saudável dessas tecnologias no convívio familiar. Não podemos ignorar que as redes são parte da realidade contemporânea e precisamos aprender como ensinar nossos jovens a usá-las de maneira consciente, para que você não se encontre no lugar dos pais do Jaime, se perguntando o que poderia ter feito a mais para evitar o desfecho trágico.

Como a série nos coloca a refletir: o bem-estar da nova geração depende da forma como lidamos com essas questões hoje.